sábado, 22 de fevereiro de 2014

Breve história do Caminho de Santiago

A história do Caminho de Santiago começa com um mito. Entenda-se mito como uma narração real ou lenda com a qual se explica um conteúdo. Não importa a verdade, mas a ideia, seu sentido. Esse mito é o da pregação de Tiago Maior, apóstolo de Jesus Cristo, na Península Ibérica.

A Bíblia fala de Tiago, filhe de Zebedeu, como um dos apóstolos mais fervorosos de Jesus. Depois da ressurreição de Cristo, Tiago só é citado novamente no seu martírio. Entre esses dois fatos, teria ocorrido uma viagem de Tiago à Península Ibérica para pregar o cristianismo. Tiago teria passado por muitas cidades que fazem parte do que hoje são Espanha e Portugal. Mas sua pregação não teria surtido o efeito esperado. No seu retorno a Jerusalém, o rei Herodes Agripa o teria decapitado e esquartejado.

Seus discípulos teriam recolhido as partes de seu corpo para realizar um desejo seu: ser sepultado na Galícia (noroeste da atual Espanha). Em uma viagem fantástica, eles teriam chegado à Península Ibérica e depositado seus restos mortais em um mausoléu no monte Libredón que, após sucessivos reinados, se perdera. Apenas no século IX ele é reencontrado, fato esse narrado em outra história mítica.

Em 814, em eremita chamado Pelaio viu sinais no céu. Estrelas que caiam sobre um mesmo lugar. Pelaio teria contado o fato ao bispo de Teodomiro, de Iria Flavia (hoje Padron) que foi até o local e lá presenciou o mesmo fenômeno. O eremita e o bispo seguiram até o local onde viam cair as estrelas. Lá, encontraram um sepulcro que julgaram ser de São Tiago.

No ano seguinte, o rei das Astúrias, Afonso II, o Casto, mandou erguer uma capela no local que passou a ser conhecido como Compostela (do latim, campus estellae, ou "campo de estrelas"), em alusão ao fenômeno descrito pelo eremita Pelaio. Alí ele ordenara que fosse construída uma igreja que havia de se tornar centro de peregrinação. A partir de então, a notícia espalhou-se na Península Ibérica, começando pela Galícia e Astúrias, e por toda a Europa e o número de peregrinos foi aumentando.

Politicamente, a peregrinação também tinha importância. Monarcas cristãos viam na peregrinação uma maneira a mais de defender seus domínios das invasões árabes. Ao mesmo tempo, a diocese de Iria Flavia ganhava importância e poder em virtude de sua visibilidade e das doações dos monarcas. A medida que os muçulmanos eram afastados as rotas começaram a consolidar-se.

No fim do século X o Caminho Francês (dos Pirineus à Santiago) começa a estabelecer-se aproveitando uma antiga estrada romana. No século XII o Papa Calisto II estabelece os Anos Santos Compostelanos o que impulsiona a peregrinação. Segundo estabelecido pela disposição papal nos anos em que o dia dedicado ao apóstolo Santiago Maior (25 de maio) coincide com o domingo, o fiel que peregrinar a Santigo de Compostela recebe indulgência especial, ou seja perdão dos pecados. O último Ano Santo Compostelano ou Jacobeu aconteceu em 2010 e o próximo acontecerá em 2021.

Em meados do século XII, o Codex Calixtinus (publicação que reúne textos acerca da história do Caminho de Santiago) descrevia quatro rotas vindas da França que se reuniam em uma mesma rota nos Pirineus. Em Ponte de Reina essa rota reunia-se com outras. Monarcas facilitavam a peregrinação com a construção de pontes e hospitais ao longo das rotas.

No século XIV, a peregrinação entra em declínio em função do cenário conturbado que se instalou nos anos seguintes em toda a Europa. O Grande Cisma do Ocidente, a reconquista da Península Ibérica pelos cristãos, guerras, fome, pestes fizeram com que progressivamente o Caminho de Santiago fosse caindo no esquecimento.

Na década de 1980, a peregrinação volta a ganhar popularidade. Em 1982, o Papa João Paulo II torna-se o primeiro Papa a visitar Santiago de Compostela reascendendo o interesse pelo Caminho. Quatro anos depois, o escritor Paulo Coelho faz o Caminho e baseado em sua experiência escreve "O Diário de um Mago". Em 1985/86 foram registrado no Escritório de Acolhida dos Peregrinos da Catedral de Santiago de Compostela apenas 2.491 pessoas. A partir de então, progressivamente o número de peregrinos foi aumentando, em especial nos Anos Santos. Ao ponto de, em 1993, Ano Santo Jacobeu, a Junta da Galícia realizar uma campanha de promoção da cidade de Santiago de Compostela e o número de peregrinos saltar a cerca de 100 mil (cerca de 10 vezes mais que nos anos anteriores). Com o passar do tempo melhora a sinalização ao longo das rotas, principalmente no Caminho Francês, o mais popular. Também aumenta o número de albergues.

Mas o perfil dos caminhantes muda. Hoje a peregrinação acontece não só por motivos religiosos, mas também por motivação cultural, esportiva e por turismo. Mesmo quando por motivação religiosa, não são só Católicos que percorrem as diversas rotas até a Catedral de Santiago de Compostela. Em 2013, a Catedral de Santiago de Compostela recebeu mais de 215 mil peregrinos. Pouco menos da metade eram espanhóis. Entre os estrangeiros destacam-se os alemães, italianos, portugueses e norteamericanos. Mais de 70% dos peregrinos percorrem o Caminho Francês. O Caminho português é o segundo mais percorrido (13,7%). No ano passado, 399 pessoas saíram de Braga, assim como pretendo fazer.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

São Tiago

Tiago, também conhecido como Tiago Maior, ou Tiago - filho de Zebedeu, é citado na Bíblia como um apóstolo de Jesus. Pelo que a Bíblia relata, Tiago e seu irmão João (o evangelista) eram pescadores. Foram encontrados por Jesus em um barco, no mar da Galiléia, consertando redes. Jesus os chamou para serem seus discípulos e eles aceitaram tão logo presenciaram um milagre realizado na sua frente (Jesus fala para que joguem as redes ao mar e elas voltam repletas de peixes). Tiago é considerado santo pelas igrejas cristãs Anglicana, Católica Romana, Luterana e Ortodoxa, ainda que existam diferenças teóricas no conceito de santidade aceitos por essas igrejas. O nome Santiago é uma derivação hispânica desse título, ou seja, vem de San Tiago (São Tiago).

Os evangelhos contam que Tiago era filho de Zebedeu (Mt 4,21) e Salomé (Mc 15,40 e Mt 27,55-56). É possível deduzir a partir de Jo 19,25 comparado com Mc 15,40 e Mt 27,55-56 que Salomé seria irmã ou prima de Maria, mãe de Jesus. Isso faz de Tiago primos de Jesus. Em virtude do ímpeto explosivo seu e de seu irmão, Tiago e João são apelidados por Jesus de "Filhos do Trovão" (Mc 3,17 e Lc 9,51-56).

Entre os fatos que a Bíblia conta sobre Tiago, fica a impressão que ele fazia parte de um círculo muito próximo de Jesus. Esteve presente em momentos chave da vida de Cristo, normalmente acompanhado de seu irmão João e de Simão Pedro. São esses momentos a Ressurreição da filha de Jairo (Mc 5,37), a Transfiguração no Monte Tabor (Mt 17,1-8,  Mc 9,2-8 e Lc 9,28-36) e a agonia no Jardim das Oliveiras (Mt 26,36-46 e Mc 14,32-42).

Também chama a atenção a narrativa do momento em que Tiago e João se indispõem com os demais apóstolos. Salomé, mãe dos dois apóstolos, sugere a Jesus que seus filhos fiquem a direita e à esquerda do mestre na sua glória. Em resposta Jesus sugere que eles não sabem o que pedem e que iriam "beber o mesmo cálice" que Ele iria beber (Mt 20,20-23 e Mc 10,35-40), o que seria uma alusão à perseguição que sofreriam por parte das autoridades da época e que resultou, entre outros fatos, no martírio de Tiago. Aliás, esse é o único apóstolo cujo martírio é citado na Bíblia (At 12,1-2). Tiago foi o primeiro dos apóstolos a ser martirizado sob as ordens do rei Herodes Agripa I. Acredita-se que o fato correu no ano 44 da Era Cristã.

Após a passagem do livro dos Atos dos Apóstolos, a Bíblia não volta a falar em Tiago, filho de Zebedeu (a Epístola de Tiago não é atribuída a esse apóstolo, mas a Tiago, filho de Alfeu, ou a um autor do fim do séc I ou início  do séc. II). O que se conta da vida de Tiago Maior entre o Pentecostes e seu martírio é controverso.

Conta-se que, após Pentecostes, Tiago, seguindo o mandado de Cristo "ide por todo mundo, proclamai o Evangelho a toda criatura" (Mc 16,15), teria partido para a Península Ibérica e feito sua pregação na região. As fontes desse fato são tardias e controversas. Até o início do séc. VI não havia em toda a literatura eclesiástica nenhuma referência a uma passagem de Tiago pela atual Espanha. Apenas no fim do séc. VI, a versão latina do Breviarium dos Apostolorum cita que "Tiago, filho de Zebedeu,... pregou na Espanha e terras ocidentais". Também o Beato Liébana, em um poema chamado Apocalipse, de 785, narra a evangelização realizada por Tiago na Península Ibérica. Em virtude dessa pregação, que teria sido mal sucedida, Tiago teria manifestado vontade de ter seu corpo sepultado na região ibérica.

Tal fato justificaria que após o martírio, seus discípulos teriam recolhido as parte de seu corpo (retalhado por ordens de Herodes para evitar que seguidores prestassem algum tipo de culto). Os restos mortais teriam sido levados à região da Galícia (onde fica Santiago de Compostela). Ainda que toda a tradição em torno da peregrinação a Santiago de Compostela se dê pelo suposto túmulo de São Tiago encontrado pelo eremita Pelaio, alguns estudiosos, mesmo dentro da Igreja Católica, defendem que esses fatos não passam de lendas.

Enzo Lodi, ao resumir a história de São Tiago em Os Santos do Calendário Romano (I santi del calendario romano, Edizioni San Paolo, 1992) afirma que "as fontes tardias, depois do século VII (em Isidoro de Sevilha), acerca de uma pretensa evangelização na Espanha, não foram confirmadas pela descoberta de suas relíuias no século IX (830), pelo bispo Teodomiro da iria, num sepulcro dos tempos romanos (na Galícia); tanto mais que Vanâncio Fortunato, no século VI, atesta que seu corpo se encontrava em Jerusalém".

Lenda ou verdade, é a narração dos acontecimentos que se derão entre a ressurreição de Jesus e o suposto sepultamento do apóstolo Tiago Maior que tem movido, desde o século IX, centenas de milhares de fiéis à viajarem a Santiago de Compostela. Também moveu reis e imperadores à disputarem a região moldando a história da Península Ibérica e da Espanha em particular.

PS: Este não texto é um trabalho de investigação histórica, tão pouco tenta comprovar alguma verdade que eu acredite. Trata-se apenas de um resumo de diversas narrativas, muitas vezes contraditórias, encontradas em diversas fontes impressas e na internet. O único trabalho que tive foi de confrontar minimamente as fontes para tentar construir uma unidade no texto e despertar a curiosidade dos leitores. Se alcancei esse objetivo, já estou satisfeito.